Existe uma passagem genial no livro Os irmãos
Karamazov, escrito pelo russo Fiódor Dostoiewsky, intitulada “O grande
inquisidor” que narra o retorno de Jesus em plena época medieval. Nessa
divagação sobre o que teria ocorrido caso o mesmo voltasse a Terra em meio a
terrível fase da inquisição europeia, seu pensamento escapa do convencional e
adentra possibilidades e fronterias até então desconhecidas.
O que aconteceria se Jesus descesse dos céus?
Qualquer pessoa provavelmente acharia fácil a resolução dessa questão,
especialmente na era medieval onde o conhecimento e a informação era privilégio
de poucos. Mas Dostoiewsky simplesmente explodiu o senso comum de que as
pessoas se curvariam e adorariam Jesus como salvador.
Nessa passagem ocorre justamente o oposto. Ao
invés de assumir seu posto frente a igreja e a população, Jesus é preso e morto
pela inquisição. A primeira vista pode parecer algo forçado, mas o encadeamento
e a argumentação feita pelo autor mostra que tal atitude poderia ser plausivel
e provavelmente correta. Eis um trecho que mostra o diálogo de com um dos
líderes religiosos falando com Jesus.
Trecho curto:
- “Ele ressuscitará tua filha”, gritam na multidão
para a mãe lacrimosa. O padre, que sai a receber o ataúde, olha com ar perplexo
e franze o cenho. De súbito, repercute um grito, a mãe se lança aos seus pés: “Se és Tu, ressuscita minha filha!”,
e estende os braços para ele. O cortejo para, deposita-se o caixão sobre as
lajes. Ele a contempla, cheio de compaixão e sua boca profere docemente mais
uma vez: “Talitha kumi” (jovem,
levanta-te), e a menina se levantou. A morta se levanta, senta-se e olha
em redor de si, sorridente e com ar admirado. Tem na mão o buquê de rosas
brancas que haviam depositado no caixão. No meio da turbamulta há agitação,
grita-se, chora-se. Naquele momento passa pela praça o cardeal, grande inquisidor.
É um ancião quase nonagenário, de elevada estatura, de rosto dessecado, olhos
cavados, mas onde luz ainda uma centelha. Não traz mais a pomposa veste com a
qual se pavoneava ontem diante do povo, enquanto eram queimados os inimigos da
Igreja romana. Retomara sua velha batina grosseira.
Aponta-o com o dedo e ordena aos guardas que o
prendam. Tão grande é o seu poder e o povo está de tal maneira habituado a
submeter-se, a obedecer-lhe tremendo, que a multidão se afasta imediatamente
diante dos esbirros; em meio dum silêncio de morte, estes o pegam e levam-no.
Como um só homem aquele povo se inclina até o chão diante do velho inquisidor,
que o abençoa sem dizer palavra e segue o seu caminho. O prisioneiro é
conduzido ao sombrio e velho edifício do Santo Ofício, onde o encerram numa estreita
cela abobadada.
Nas trevas, a porta de ferro da masmorra abre-se
de repente e o grande inquisidor aparece, com um facho na mão. Está só, a porta
torna a fechar-se atrás dele. Para no limiar e observa longamente a Santa Face.
Por fim, aproxima-se, pousa facho sobre a mesa e diz-lhe:
- És Tu, és Tu? -
Não recebendo resposta, acrescenta rapidamente: - Não digas nada, cala-te.
Aliás, que poderias dizer? Sei demais. Não tens o direito de acrescentar uma
palavra mais ao que já disseste outrora. Por que vieste estorvar-nos? Porque tu
nos estorvas, bem o sabes. Mas sabes o que acontecerá amanhã? Ignoro quem tu és
e não quero sabê-lo: tu ou apenas sua aparência; mas amanhã eu te condenarei e
serás queimado como o pior dos heréticos, e esse mesmo povo que hoje te beijava
os pés precipitar-se-á amanhã, a um sinal meu, para alimentar tua fogueira. Sabes
disso? Talvez - acrescenta o velho, pensativo, com os olhos sempre fixos em
seu Prisioneiro. (...)
Entretanto, a grande questão que fica é o que
ocorreria caso um líder espiritual, independentemente de qual religião,
realmente descesse dos céus nos dias atuais. Como as pessoas se comportariam?
Quais os impactos sociais? Como seria o tratamento dado pela mídia? Apesar
dessas e de outras centenas de questões pertinentes, nota-se que as sociedades
ocidentais e orientais, apesar de todo avanço conquistado, ainda não possui
bases sólidas de sustentação.
Não refiro apenas as questões econômicas, já
que um surgimento como esse provavelmente traria inúmeros colapsos tanto na
bolsa de valores quanto nas outras atividades profissionais. No entanto, o
ponto central aqui é que provavelmente as pessoas não acreditariam que tal
evento seria real, sem falar na reclamação pelos problemas pelo mundo. Se na
passagem de “O grande inquisidor” a inquisição foi seu novo algoz, será que
atualmente o pentágono ou grupo similar deixaria esse líder livre?
Mesmo a humanidade em sua maioria tendo uma
religião e acreditando em profecias e revelações, as populações parecem não
estar dispostas em aceitar eventos que não sejam magníficos e assim compatíveis
com sua imaginação de eventos divinos. Há um fosso que separa a expectativa
ilusória do religioso com a realidade prática cotidiana.
O objetivo aqui nem é entrar nos méritos das
razões de Jesus ainda não ter descido dos céus, como foi anunciado e falado por
tantos séculos, e fez legiões de fiéis aguardarem ansiosamente pelo ano 2000.
Como as previsões não se concretizaram agora o discurso religioso se limita a
afirmar que voltará no fim dos tempos, seja lá quando for isso.
Do mesmo modo que líderes religiosos não querem
perder o seu prestígio ou pessoas exigem que suas vontades sejam atendidas, a
vida pública de quem é aclamado como o próprio Deus, notadamente depois do
Concílio de Nicéia, não seria nada fácil e uma crucificação moderna não estaria
descartada.
Talvez a maior vitória de Dostoiewsky tenha
sido o vislumbre da natureza humana, que horas é lúcida e comedida e noutros
momentos incoerente e agressiva. Ainda que Maomé, Odin, Zoroastro, Buda ou
outra figura mítica surgisse e desafiasse nosso senso de credulidade seriam
fortemente atacados. O ser humano sabe acolher as coisas como são ou apenas
afagar o que corresponde aos seus anseios?
Num mundo cada vez mais polarizado é terrível
pensar que a inquisição está no interior da maioria das pessoas. Esse juiz
interno que rapidamente julga e condena sem espaço para opiniões divergentes.
Que a humanidade seja cada vez mais avançada nas questões emocionais a fim de
que num futuro próximo não nos resumamos a seres infantis com tecnologia
avançada. Atualmente você é um grande inquisidor?
Esse texto traz apenas informações básicas.
Estude! Se aprofunde mais no assunto!
E não acredite em nada. Experimente!
Por Alexandre Pereira.